A cena é insólita. Uma
espécie de hippie - cheia de lenços coloridos, brincos e enormes colares
- uma intelectual e um homem muito magrinho, de idade imponderável.
Caminham os três, a passos muito lentos, no ritmo do homem. O cenário é o
xopin de Blumenau - uma cidade de porte médio do interior de Santa
Catarina. Com a proximidade do natal, as luzes faíscam em todo o
ambiente e as gentes caminham num ritmo frenético por entre as lojas
feericamente decoradas. Algumas pessoas param, observando a cena
incomum. Fora do tempo, os três seguem, lentamente, em direção ao
cinema. O trajeto parece interminável. As mulheres olham reverentes para
o homem velhinho. Vez em quando ele para e fala alguma coisa. As
mulheres estacam e escutam. Não dizem palavra. O silêncio paira depois
de se erguer a voz absurdamente forte do homem velho, que pronuncia um
pensar capaz de movimentar o cosmos. É que ele não é um homem comum. É,
talvez, um dos últimos sábios vivos neste mundo de deus.
Montevidéu - equinócio da primavera - setembro/1905
Não poderia ser
diferente. Félix Peyrallo Carbajal tinha que nascer num dia mágico, no
alvorecer do século vinte. Era 23 de setembro, na charmosa Montevidéu.
Enquanto o equinócio marcava o início de uma nova estação, a mãe de
Félix morria ao dar a luz. Naqueles dias, aparecia na capital uruguaia o
primeiro automóvel. Eram tempos estranhos. Na casa de Félix, tristeza e
alegria. Vida e morte. Mas o garoto franzino não faria feio diante da
mãe que nunca conheceu. Saberia respeitar a vida e vivê-la com tamanha
intensidade, numa sofreguidão que sequer a velhice amainaria. O pai era
violinista e chegou a ser regente da orquestra de Montevidéu. Deixou
como herança, não só uma fortuna considerável em dinheiro, mas o gosto
pela música, pelo belo, pela arte, pela harmonia. Morreu quando Félix
tinha 14 anos e abriu a porta do mundo. Nada mais o prendia. Tinha
“mucha plata” e uma vontade voraz de conhecer o mundo. Fez-se andante,
filho do vento, e nunca mais parou. Blumenau - verão - 2004
Félix está perto de
completar 100 anos. Cem giros em volta do sol, seu sul. É mais lúcido do
que qualquer um de nós. Mora num asilo público desde 2003. Foi levado
pelo então prefeito de Blumenau Décio Lima. O Lar São Simeão, que existe
desde 1954, é o mais antigo dispensário da cidade e abriga, além de
Félix, mais 91 almas acima de 60 anos. A entrada é simples. Um portão de
ferro, um vigilante, uma curta estrada até o alpendre. Na parte da
frente, aberta, vários idosos estão sentados, olhar perdido no vazio.
Poucos ligam para as pessoas que entram e menos ainda cumprimentam ao
serem saudados. Na sala, um grupo está sentado em frente à televisão.
Praticamente nenhum realmente vê o programa. Limitam-se a simplesmente a
estar ali, perdidos, talvez, no passado ou no futuro. Mas, num canto,
sob a luz de uma janela, está Félix. Tem uma mesa só para ele. Cheia de
livros, papéis, lápis, canetas. Está com o rosto enterrado num papel.
Enxerga mal, por causa da catarata. Tão logo nos vê, se levanta,
solícito. Beija, delicadamente, a mão de cada uma. "- Senhoritas!!!!”,
exclama, com um adorável sotaque espanhol. É um gentil homem. Sem que
ninguém pergunte vai informando. "Estou traduzindo este texto para uma
revista de Buenos Aires". E assim é. Beirando um século, o sábio
anarquista trabalha a todo o vapor. Escreve, cria, lê e profere
conferências. Anos 20/30 - A belle époque
Quando decidiu sair pelo
mundo, aos 17 anos, Félix Carbajal só queria saber de uma coisa:
conhecimento. Não apenas ler nos livros, perdido nos caminhos de
Montevidéu. Queria viver, sentir, tocar, conhecer as pessoas certas, os
lugares onde a vida vibrava. Seu primeiro porto foi a Europa. Madri.
Tinha dinheiro e o usaria, todo, para aprender. Estudou letras,
compartilhou a moradia estudantil e a vida com figuras como Buñoel,
Garcia Lorca e Pedro Garfias. Encantou-se pela poesia. Viveu toda a
efervescência da cidade espanhola. Logo depois, seguiu para Paris, onde
estudou na Sorbonne e viveu a "belle époque" nos braços das mulheres
mais ardentes. Seu foco agora era a filosofia. Seu objetivo, viver
intensamente. Peregrinou por muitos caminhos, dizendo poesia e
enchendo-se de palavras. Foi aluno de Piaget e com ele estudou o que
chama de “psicologia genética”. O caminho do Id para o Ego e o Super
Ego. Tomou muito champanhe, amou, dividiu. Saboreou cada experiência.
Encheu-se de Filosofia, Antropologia, Astronomia, Biologia, Química,
Física, Matemática, Artes, Música. uff... Não há o que não saiba, e com
profundidade. Fala inglês, francês, italiano, alemão, latim, grego.
Dedicou sua vida a perseguir e conhecer figuras com quem pudesse sentar e
fruir da boa conversa, da poesia. Blumenau – verão – 2004
O estranho trio chega,
enfim, ao cinema. Percorrera um longo caminho no passo de Félix. Ele
está seguro. Entra como se fora o dono. “Aqui tengo entrada libre! Todos
saben que soy un estudioso del cine”. E é assim! O sábio é frequentador
assíduo das salas de cinema de Blumenau e ninguém ousa barrá-lo em
qualquer delas. Vê um mesmo filme várias vezes. “Hay mucho que mirar. La
fotografia, el figurino, enfin...” Na entrada, ele deixa sair sua voz
de trovão. “A señorita podria llevar-me hasta la primera fila?” Passa
levinho, com passos de lã. Os três vão assistir ao filme que conta a
vida de Lutero, o padre que, lá no 700, questiona toda a ordem católica e
cria uma nova igreja, no movimento que ficou conhecido como “Reforma
Protestante”. Sentam-se na segunda fileira. Félix não vê muito bem.
Reclama que a operação de catarata é uma coisa simples hoje em dia, que
ele já poderia ter feito. Mas, até agora, ninguém ainda se ofereceu para
fazer isso. Parece que os oftalmologistas de Blumenau ainda não
perceberam que ele precisa disso, mas que, quando perceberem, farão o
que deve ser feito. Fixa os olhos na tela e fica atento. Quase não
pisca. Vez em quando, uma das mulheres o mira, com o canto do olho, para
ver se não dormiu. Qual o quê. Está concentrado. Ora balança a cabeça,
ora coça o queixo. Lutero vive seus dramas na tela. Nasce o gnomonista – anos 40
Quando a segunda guerra
acabou Félix já estava completamente sem dinheiro. Gastara tudo. Nunca
teve apego a nada de material. Enquanto teve, gozou. Ficou sabendo que
já não tinha mais renda em Los Angeles, EUA, quando foi ao banco sacar
uns trocados: "Não há saldo, senhor". Estava arruinado. Depois disso,
pôs-se a andar, vivendo como dava, na casa de um, de outro. Já era um
anarquista. Sem documentos, sem diplomas, sem papéis, sem família, sem
laços. Como bagagem levava unicamente a sabedoria e uma muda de roupa,
sempre branca. Dos EUA foi para a América Central, atrás dos poetas, e
lá começou seu trabalho de plantar relógios. O primeiro foi em León, na
Nicarágua, para onde fora a fim de conhecer a casa natal do poeta Rubén
Darío. Na casa onde se hospedou havia um garotinho lendo uma revista
sobre relógios de sol. De brincadeira, como um presente, Félix fez um,
em miniatura. Como a conferência sobre o poeta foi um sucesso, logo
todos sabiam que ele fazia relógios. O prefeito o procurou e pediu para
que construísse um maior, na praça da cidade. Foi o que fez e nascia aí
sua profissão de gnomonista, ou seja, construtor de relógio de sol. Ele
não sabe muito bem, mas acredita que já tenha feito mais de 180 relógios
em praticamente todos os países da América Latina. Este é número
oficial registrado pela Associação Internacional de Gnomonistas Carpe
Diem que, inclusive, enviou a Félix, no início deste ano, uma carta onde
o informa sobre sua inscrição como membro honorário. O presidente da
entidade, que fica na Espanha, ficou assombrado com a notícia de que
havia aqui, na América Latina, um gonomonista com um trabalho tão
extenso. No Brasil, há relógios de Félix por vários estados, Paraíba,
Bahia, Paraná, Rio Grande do Sul, Santa Catarina.
Rio de Janeiro - anos 50
Félix sempre teve uma
obsessão pela poesia e pela literatura. Sua vida foi vasculhar as terras
atrás dos poetas. Viveu com Garcia Lorca, conheceu os nomes mais
importantes da literatura na França, conviveu com Hemingway, amou a
poetisa cubana Carilda Labra. E foi nessa caminhada atrás dos nomes das
letras que chegou ao Rio. Queria falar com Manuel Bandeira. Fuçou e
descobriu onde o poeta morava. Um belo dia bateu em sua porta. Disse ser
um poeta também, que conhecia toda sua obra e queria "charlar".
Bandeira dispensou-o, pensando ser mais um chato. "Volte outro dia, mas
telefone antes". Félix curvou-se, fez uma reverência e partiu. No dia
seguinte, quando o poeta abriu a porta de casa, lá estava Félix,
esperando. "Dê-me três minutos. Três minutos de relógio". O poeta
assentiu, e o jovem uruguaio o marcou tanto que a ele dedicou uma
crônica. O estrangeiro. Está no livro Flauta de Papel, editado em 1957.
Diz Bandeira. "Dei-lhe os três minutos. Uma lábia infernal... Virou pelo
avesso o meu `Último poema´, Comentou a tradução do ´Torso de Apolo´,
de Rilke , referiu-se com entusiasmo a uma jovem poetisa cubana, Carilda
Oliver Labra, conhecia todo o mundo na América, falou de Neruda, de
Leon de Greiff, de Coronel Urtecho, mostrou-me notícias de conferências
suas em Belém do Pará... ... - De que vive? - De mendicância. Tem
sido assim em toda parte, será aqui também. Quando tenho fome, entro num
restaurante e peço comida. Um, dois, três recusam, o quarto me atende.
Quando me regalam onde dormir, durmo em cama. Senão passo a noite
andando: tenho uma saúde de ferro, posso andar 25 quilômetros sem sentir
fadiga. Comer, dormir não são problemas para mim. Os problemas da vida
são outros. Despediu-se
sem me pedir nada. Perguntei-lhe se aceitava dinheiro para o jantar. O
´sim´ alegre e enérgico com que respondeu já era o seu agradecimento.
Apertou a minha mão e antes que eu chamasse o elevador, desceu as
escadas como uma bala."
Blumenau – outono – 2004 – encontro de almas
Ela se chama Roseméri
Laurindo e é professora na FURB, em Blumenau e na Unidavi, em Rio do
Sul. Vive no mundo das ideias, sempre pensando um jeito de melhor
iluminar os caminhos das jovens almas que circulam pelos corredores da
universidade. Então, um belo dia, o viu. Pareceu-lhe estranho, aquele
velho, bem velhinho, magérrimo, andando no passo miúdo. Estranha figura
naquelas paragens. Seguiu seu rumo, esqueceu. Então, outro dia,
observou, na entrada principal, um ajuntamento. Reitor, pró-reitores,
professores, alunos. Re-inauguravam um relógio de sol – coisa antiga e
quase extinta - que fica ali, bem no fim da escada da entrada principal.
Acercou-se e, ali estava. Ele, o velho. Parecia ainda mais mirradinho
na sua roupa branca. Estacou. Ficou. Quem seria?! Não demorou muito e
ele foi chamado. Era o construtor. Havia erguido aquela obra havia 35
anos, quando ainda estava no vigor dos seus 64 anos de vida. Peregrino,
já havia plantado dezenas de relógios de sol pela América Latina
inteira. Aquele era mais um. Então, ele falou. O corpo magrinho sumiu, a
silhueta de homem velho desapareceu. Assomou sua voz de trovão, como
que num encantamento. Em poucos segundos, hipnotizava a todos com sua
fala sobre os quadrantes solares, o cosmos, o planeta, o universo. “Aí,
ele começou a falar da ciência que se produz nas universidades e faz com
que o homem possa medir o tempo. E, olhando sua obra, alertou que,
apesar disso, essa mesma ciência era incapaz de compreender o movimento
dos corpos humanos, que também é tempo”. Foi uma hora mágica. Aquele
homem, braços abertos, a bradar: “Esa pareja (casal), estes cuerpos,
estas curvas, esto, el tiempo no es capaz de medir. Como no se puede
medir el movimiento de las ‘bundas’ de las mulatas de Sargentelli”.
Depois, declamou poesias, falou de poetas, pensadores, filósofos, uma
lista interminável. Era impossível sair dali. Rose estava tomada,
arrebatada por ele. Nunca tinha ouvido alguém falar daquele jeito, com
aquela paixão, com toda a sapiência. Era certo, o levaria até seus
alunos.
Rio do Sul – outono – 2004
Roseméri decide carregar
Félix para uma conferência em Rio do Sul, para os alunos de jornalismo.
Aqueles garotos precisavam beber naquela fonte viva de quase todo o
século vinte. “Ele é um sábio. Cada palavra que diz é carregada de
significados. E está aqui, vivo. Eu tinha que levá-lo”. É uma novela.
Félix não pode mais sair do asilo onde vive sem que tenha uma
autorização especial. Para tirá-lo de lá, mesmo que para um simples
passeio, é necessário assinar um documento, assumir a responsabilidade. É
que ele toma remédios e precisa de cuidados. Rose não se intimida. Faz a
peregrinação burocrática e lá se vai com o sábio, subindo a serra de
Blumenau até Rio do Sul. No meio do caminho, o carro quebra. Félix está
sereno, nem se importa. Rose se apavora. O que vai fazer com aquele
homem, daquela idade, no meio do nada. “Estamos com um problema, e tudo o
que eu quero é deixar o senhor confortável”. Ele ri, aquele seu riso
torto, quase cínico. “Conforto? O que es esto? Yo soy un peregrino,
puedo dormir en un banco, en el relento. No hay que preocupar”. Chama
guincho, negocia, arranja tudo e segue a viagem. Chegam atrasados. A
turma espera, ansiosa. Mas, Félix não é homem de abrir mão dos pequenos
prazeres. Quer um chá. Ele comanda. Tudo para. A turma fica à espera e
ele vai para o bar. Lá, promove seu ritual. “Quiero água caliente, a 100
grados. Hay que borbulhar de forma que mi mano se queme”. Quer o chá em
separado e a água na chaleira. Tudo é feito como pede. A água chega,
ele observa a fumaça por longos segundos, quieto. Vê se o calor lhe
queima a mão, só então coloca na xícara. Calmamente sorve o chá.
Passam-se 15 minutos. Ele frui, ensina que esse é o prazer da vida,
observar aquilo que, de alguma maneira, move o mundo. Sem pressa. Então
vai para o auditório. Um silêncio desconfiado. A gurizada se espreme
entre risadas. O que pode aquele velhinho oferecer de bom? Deve estar
morrendo... Então, ele senta e começa a falar. A voz ribomba pelo
espaço. Por duas horas ele hipnotiza a turma. Ninguém sai.
Blumenau – Verão – 2004
O filme termina. Os três
ficam até a última letra da enorme ficha técnica. Já não há mais
ninguém. A moça que limpa o espaço para a próxima sessão observa sem
entender aquelas três almas a mirar as letrinhas. Balança a cabeça como a
dizer, loucos... Lentamente, eles saem. Seguem pelo xopin buscando um
lugar para fazer um lanche. Um casal passa levando com ele um garotinho,
ainda ensaiando os primeiros passos. Félix para. Fica bem na frente do
menino. Eles se olham por algum tempo. O velho sorri, o menino também.
Depois, o casal segue e ele fica, parado. “En este mundo, los niños son
los únicos que me hacen verter una lágrima”, brada. Fala então que
poderia ficar emocionado com uma nuvem, um pássaro, um rio limpo, mas
que, agora, nesses tempos de guerra, de ódio, em que os Estados Unidos
atacam países sem motivos, com base em mentiras, não há mais nada com
que se enternecer. Só as crianças. Essas sim. Mas, só até os cinco anos.
Depois disso, perdem a pureza. Passados muitos minutos e, na cadência
do andar de Félix, chegam ao restaurante. Tomam uma sopa de capelletti.
“Toda mi alimentación es frugal”, diz. Depois, pronuncia, lentamentente,
um nome: Aparício Silva Rillo. “Te diz algo?” A mulher, criada em São
Borja, terra do poeta gaúcho, assente. “Sim, é um poeta!”. Félix conta
que também fez um relógio de sol em São Borja no ano de 1972. “Terra de
los presidentes. Estan los tres allá. Getúlio, Jango y Brizola”. Ri um
riso maroto. Sabe que Brizola nunca foi presidente. Conta que, na
prefeitura, era Aparício – o poeta - quem mandava. “El prefeito, Juca,
nada decidia”. E seus olhos se perdem em lembranças. Fala de Paso de los
Libres. Da balsa. “Agora já tem uma ponte lá”, diz a mulher. Ele
suspira. “Sí, e aún está el reloj”.
São Borja – verão – 2004
Falar em Félix Carbajal
para Marco Antônio Loguercio, 46, um engenheiro agrônomo de São Borja, é
provocar nele uma emoção oceânica. Ao saber que o velho sábio ainda
está vivo, a voz treme de emoção. “Sou louco por ele”. Confessa que sua
vida mudou depois de tê-lo conhecido, em 1996, quando voltou à fronteira
depois de saber que o poeta Aparício Silva Rillo havia morrido. “Ele me
ensinou a ler coisas que não estão escritas, me ensinou sobre o tempo,
que não existe. Sabe, ele pode ficar seis meses olhando para uma
formiga. Ele faz a gente ver o que realmente importa nessa vida. As
pessoas levam uma vida inteira para aprender isso. Eu aprendi com ele e
hoje a minha vida é outra”. Marco, que é genro de Rillo e herdeiro de
sua obra poética, conta que Félix foi a estrela do Festival da Barranca,
um encontro só de homens - poetas, compositores, intelectuais, gaúchos
de todo o tipo - que acontece em São Borja, todos os anos. “Foi uma
coisa linda, 260 homens reunidos e o Félix sentou numa cadeira, com
aquele corpo magrinho, e começou a falar sobre o que sentiu quando
chegou à barranca do rio Uruguai. Era poesia, literatura, sei lá. Aquele
povo todo ficou num silêncio nunca vivido e depois de hora e meia de
pura emoção, se levantaram e foram beijar o velho”. Mas a lembrança mais
viva que Marco Antônio tem dele é a da despedida. Conta que havia
prometido levá-lo até a balsa – naqueles dias não havia ainda a ponte –
na qual ele atravessaria para Santo Tomé, na Argentina. Atrasou-se.
Quando chegou à casa onde ele estava, já se havia ido. Correu até o Paso
e lá estava o velho, impecável. “Por que não me esperou, Félix?” E ele
quieto. Não disse palavra. Quando a balsa chegou, foi entrando, sem
abraço, sem nada. “Eu corri e o apertei em meus braços, enchi ele de
beijo, e ele sério”. Afastou-se e só então disse: “Yo te quiero mucho
bien”. Seguiu seu rumo, entrou na balsa e sequer voltou-se para olhar o
amigo. Marco ficou parado, olhando a balsa se afastar, já cheio de
saudade. Lá no meio do rio, Félix virou-se, tirou o chapéu panamá que
levava na cabeça e se foi, acenando. “Essa imagem não me sai da cabeça”.
Na cidade de São Borja a vida segue seu rumo quase igual. O Juca, José
Pereira Alvarez, de 72 anos, que o acolheu em 1972, quando era prefeito,
está à frente da prefeitura outra vez. Os relógios de sol que Félix lá
construiu seguem marcando o tempo da cidade fronteiriça. Um deles
enfeita a frente da prefeitura e o outro está na praça do Paso, bairro
que espia a Argentina, na beira da barranca do rio. Blumenau – dezembro de 2004
Ricardo Casarini Muzy é
fotógrafo e andarilho. Vive a vida fazendo artesanato, fotografando,
trabalhando num bar, fazendo um bico aqui, ali. Queria conhecer o velho
de quem tanto ouvira falar. Pega sua Kombi velha e segue o rumo de
Blumenau. Lá recebe lições que nunca mais vai esquecer. No asilo, Félix
espera. Já sabe que vão fotografá-lo. Está sentado na sua mesa a fazer
uma dobradura. É seu presente de natal para a namorada Elza, que vive em
Lages. “O trabalho tem uma riqueza de detalhes que é impressionante. Em
cada pedaço da dobradura ele escreveu o nome dela. Uma coisa
emocionante” . Félix ensina que o amor não está na cama, nem no sexo. O
amor está na alma, na entrega, na capacidade de estar junto, de dividir
os saberes, numa vibração que está para além do corpo, além do tempo. É
assim com Elza. “Ele disse que as pessoas, no natal, compram coisas para
provar que amam, mas isso não é verdade. Disse que amor era aquilo que
ele fizera. Passara horas, muitas horas, construindo aquele presente.
Tinha colocado ali todo o seu amor e agora o mandaria pelo correio. Uma
dobradura, recheada do nome dela, cheia de mundos”. Félix sobe na Kombi
como se fosse um guri, está feliz da vida. Vai até a FURB mostrar seu
relógio-do-sol. Fala de sua vida, andando pelas terras da América e da
Europa. Sem dinheiro, sem qualquer bem. “Nunca comprei uma casa – ele me
disse - nunca comprei um carro, nunca tive nada... e tenho tudo! Ele
verte felicidade, ele está repleto, nunca vai estar em solidão”. Rivera/Uruguai – final dos anos 80
É noite, num desses
típicos cafés uruguaios. Dentro dele, Félix conversa com Eduardo
Galeano, enquanto bebem uma garrafa de vinho. Confessa que está
preocupado. Sente-se muito bem naquele lugar e isso não é bom. Vai dando
uma vontade de querer ficar, atado a alguma mulher ou a uma mesa de
café. Os dois poetas riem e falam a noite toda. Da vida, do amor e de
como é bom estar nesse mundo. No dia seguinte, Félix se vai. Galeano
fica e a ele dedica uma crônica que está eternizada no livro “Janelas”.
Chama-se “O Andante” e diz: Don Félix vai deixando, na sua passagem,
relógios de sol. Esse raro uruguaio que não é aposentado e nem quer
sê-lo, vivia disso: fazia quadrantes, relógios sem máquinas, e os
oferecia às praças dos povos. Não para medir o tempo, costume que a ele
parecia bobo, mas pelo simples gosto de revelar os movimentos da terra,
que se volteia como uma mulher, e pelo desejo de dividir os segredos do
céu. ...Já a tentação de
ficar estava dando a ordem de ir: - o novo, o novo, o novo, bradou,
golpeando a mesa com suas mãos de criança. Para ir-se preferia o
amanhecer. Quando o sol chegava ele se ia. Nem bem abriam as portas da
estação de ônibus ou trem, don Félix mostrava os poucos trocados que
havia juntado e dizia ao vendedor: Até onde chegue! Blumenau – verão 2004
A noite caminha,
vagarosa, como Félix. No xopin, os três terminam a sopa. Hora de voltar
para casa. O sábio segue falando de Goethe, Montaigne, Platão, Lorca,
Aristóteles, Alarcón, Unamuno. Está alegre feito um menino. Principia
uma brincadeira. “Diga uma palabra, cualquier, la que venga en la
cabeza”. “Cachoeira”, diz a mulher. Prontamente ele conta uma piada que
tem como tema a cachoeira. E assim repete com mais outra palavra, para a
outra mulher. Os risos ecoam. As pessoas olham. Então se dá o direito
de dizer a sua palavra e outra piada. Mais risadas. Ele pede uma tônica,
um copo com um limão espremido e açúcar. Quando chega, dispõe cada
coisa a sua frente e inicia mais um ritual. Coloca a tônica no copo com
limão, depois o açúcar e pede que uma das mulheres mexa. Toma o
refresco, vagarosamente. Pede a sobremesa e diz que é tempo de ir.
Levantam-se a retomam o longo trajeto até o estacionamento, passo a
passo, miúdo. Ele está leve. Insiste em contar uma piada que lhe contara
o velho Piaget. “Él era muy serio, pero, vez en cuando salía con una
piada”. Conta que um gato vinha passando e outro estava sobre o muro. O
que descansava no muro cumprimentou: miaaauuuu! E o outro respondeu: Au
au! “Que pasa, dice el gato. Estoy aprendiendo lenguas, dice el otro”. E
ri, um riso de cristal. No carro, uma das mulheres tenta ajudá-lo com o
cinto de segurança. Ele rejeita, ríspido. Fica em silêncio. Passam-se
eternos minutos. Então ele fala. “A un niño, de seis o noventa años, se
les deja hacer las cosas solos. Si te piden ayuda, ayuda. Pero si no,
dejalos!” Mais uma lição. Faltam dois minutos para a meia-noite quando
chegam ao asilo. Rose brinca: “A cinderela está chegando”. Ele ri,
faceiro. Pede que ela pare o carro. “Mira la luna, que és?” É crescente.
“Mira”. E ficam os três a olhar a lua no céu. O tempo do relógio
passando. Então suspiram e entram. Ele desce. Os funcionários do asilo
vêm, solícitos. Querem que ele entre. “No, debo despedirme de las
señoritas”. Beija a mão de cada uma e fica em pé, esperando que o carro
dê a volta. Na saída, no portão, as duas se voltam para um último aceno.
Ele tira do bolso um lenço branco e fica acenando, com um doce riso no
rosto, até que o carro desapareça na curva. As duas mulheres seguem em
silêncio, cada uma carregada de mundos em si. O tempo, agora, tem outro
significado.
N.E – Félix encantou no ano seguinte, em agosto de 2005. Vive por toda a América baixa, nos seus relógios de sol.